Caatinga Institutions: An Interview with O grupo inteiro
In 2020, the Open Call for Fellows by Het Nieuwe Instituut's Research Department focused on the theme, Regeneration: New Institutional Practices. It invited collectives to take current conditions of burn-out and exhaustion as a point of departure to generate forms of collective organisation and action. Following a a pre-selection and final jury process, two collectives were selected for a fellowship from October 2020 to March 2021. One of them was O grupo inteiro (Carol Tonetti, Cláudio Bueno, Ligia Nobre and Vitor Cesar) together with Enrico Rocha and other collaborators. With their project Drought, Nurturing, Orós, Caatinga, Sertão (DNOCS), they proposed a 'beta research phase' in which to establish a becoming-with-Caatinga institution, as an act of resistance against extractivist, capitalist and developmentalist powers there. Why is the Caatinga (a biome in north-east Brazil) an interesting territory in which to reimagine institutions? What forms of 'instituting' are to be learned from Caatinga and its communities, without following extractive logics? And how do O Grupo Inteiro's research findings inform their ways of organising as a collective? The following interview is published in both English and Portuguese.
2 July 2021
Em 2020, a Chamada para Bolsistas do Departamento de Pesquisa do Het Nieuwe Instituut centrou-se no tema "Regeneração: Novas Práticas Institucionais". Esta chamada aberta convidou os coletivos a tomar as condições atuais de esgotamento e exaustão como um ponto de partida para gerar formas de organização e ação coletiva. Após um processo de pré-seleção e júri final, um dos coletivos selecionados para uma bolsa de estudo de outubro de 2020 a março de 2021 foi O grupo inteiro (Carol Tonetti, Cláudio Bueno, Ligia Nobre e Vitor Cesar) junto com Enrico Rocha e outros colaboradores. Com seu projeto "Drought, Nurturing, Orós, Caatinga, Sertão" (DNOCS), O grupo inteiro propôs uma "fase beta" de pesquisa, na qual se compreenderia princípios para um processo de institucionalização em convivência com a Caatinga, como ato de oposição aos poderes extrativistas, capitalistas e desenvolvimentistas da região. Por que a Caatinga é um território interessante para reimaginar instituições? Que formas de instituição podem ser aprendidas com a Caatinga e suas comunidades, sem seguir lógicas extrativistas? E como os resultados das pesquisas de O Grupo Inteiro informam suas formas de organização como coletivo?
A few weeks prior to this interview, O grupo inteiro allowed the Research department of Het Nieuwe Instituut to experience the first rain in Caatinga (a biome in north-east Brazil) in one of our collective research sessions. Through video footage taken during the collective's visit to the region in January 2021, we could hear the intense rainfall hitting the dry surfaces of Caatinga in Rotterdam. Although 7880 km from the location of the footage, it created a space for connection for all 15 people in the Zoom call. When on the morning of the interview a seemingly similar amount of water was falling in the Netherlands, I was reminded of the collective's reflections on water, rain and drought already learned from their research on Caatinga.
In their engagement with the Caatinga, O grupo inteiro aims to develop regenerative relations and ways of learning emerging from nonhierarchical alliances, symbiotic attachments and mingling with the region. The collective stayed in Caatinga without a predefined research method, trying to get used and adapt to the rhythms of this biome. "When we were in Caatinga in January 2021, we saw the vegetation completely dry, with little shade and very strong sun," O grupo inteiro reflects while talking about Caatinga prior to rainfall.
"The plants seemed dead to us, but in reality, they were in a kind of hibernation, alive and protected by many thorns. These thorns also have the function of saving energy. At the end of the month, we witnessed a rainy day and the landscape changed quickly. Within days, the vegetation was green."
Algumas semanas antes do meu encontro digital com O grupo inteiro, o coletivo de artistas proporcionou ao departamento de pesquisa do Het Nieuwe Instituut a experiência da primeira chuva na Caatinga depois de um longo período, em uma de nossas sessões de pesquisa coletiva. Através de filmagens feitas durante a visita do coletivo à região, em janeiro de 2021, ouvimos coletivamente, desde Rotterdam, as intensas chuvas que atingiram as superfícies áridas da Caatinga. Apesar de 7.880 quilômetros de distância do local em que as filmagens foram realizadas, elas criaram um espaço de conexão entre todas as quinze pessoas na chamada Zoom. Quando, na manhã desta entrevista, uma quantidade aparentemente semelhante de água vinha dos céus da Holanda, me lembrei das reflexões do coletivo sobre a água, a chuva e a seca que aprendi em suas pesquisas sobre a Caatinga.
A partir de seu engajamento com a Caatinga, O Grupo Inteiro visa desenvolver relações regenerativas e maneiras de aprender que emergem de relações não hierárquicas, laços simbióticos e misturando-se com a região. O coletivo permaneceu na Caatinga sem um método de pesquisa pré-definido, tentando se acostumar e se adaptar aos ritmos do bioma. "Quando estivemos na Caatinga em janeiro de 2021, vimos a vegetação completamente seca, com pouca sombra e muito sol forte", reflete O Grupo Inteiro enquanto fala da Caatinga antes das chuvas.
"As plantas pareciam mortas, mas na realidade, estavam numa espécie de hibernação, vivas e protegidas por muitos espinhos. Estes espinhos também têm a função de economizar energia. No final do mês, testemunhamos um dia chuvoso e a paisagem mudou rapidamente. Em poucos dias, a vegetação estava verde".
Drought Nurturing Orós Caatinga Sertão. Video by O grupo inteiro.
Drought Nurturing Orós Caatinga Sertão. Video by O grupo inteiro.
"On the day of the first rain, we visited a settlement and talked with members of this place," the collective continues. "When the rain started, the water fell on the roof of the house and drained in a homemade water intake system. Gutters and tubes channelled the water into buckets and gallons. As the rain was heavy, the containers soon filled up and overflowed. Our first impulse, in an automated way, was to look for more containers to store more water. But that was not the action of the residents. What we didn't know was that the first rain is there just to wash the roof, wet the earth and wash the clothes. In view of the home water-collection infrastructures, which never capture all the rainwater that falls from heaven, we ask ourselves: How much water is enough? What infrastructure is sufficient?"
Based in São Paulo, Brazil, since 2014, O grupo inteiro works on the crossroads between design, architecture, pedagogy and technology. Their projects, realised by the multidisciplinary artistic collective and their collaborators, address the multi-dimensions of infrastructures, modes of conviviality and relationships with the Earth. Starting from the city of São Paulo, their projects are often connected to urban spaces and institutions, which leads the collective to elaborate on issues such as: housing, education, presence and availability of water, urban mobility, the right to the city, policies of bodies and technological infrastructures amongst others. O grupo inteiro continuously multiplies their own paths and establishes conditions for public dialogues informed by and with different networks, platforms, people and projects.
Interested in expanding the political and cultural understanding of relating to water and its infrastructures (beyond the urban environment and the south-east region of Brazil) O grupo inteiro connected with the research of Vitor Cesar and Enrico Rocha for the occasion of the Het Nieuwe Instituut research fellowship. Vitor and Enrico's research relates to the different political, social and aesthetic dimensions of water in the northeast region of the country.
In the context of this fellowship research, water is observed in the spatial continuity between rural and urban environments, as well as in the extractive relationships that cities and financial capital have with rural life, defining who can or cannot access water. "Through this research, we were able to get closer to other perspectives, not only human, in a process of connecting with other beings and the environment. We sought to find less a asymmetrical relationship between the (often predatory) rationality when we talk about the world from our desktops, and actual field experience, which confronts it with contradictions - even in the face of the limitations imposed by a pandemic," says the collective.
"No dia da primeira chuva, visitamos um assentamento e conversamos com membros do lugar", continua o coletivo. "Quando a chuva começou, a água caiu sobre o telhado da casa e foi drenada em um sistema caseiro de captação de água". Calhas e tubos canalizavam a água para dentro de baldes e galões. Como a chuva era forte, os recipientes logo se encheram e transbordaram. Nosso primeiro impulso, de forma automatizada, foi procurar outros recipientes para armazenar mais água. Mas esse não foi o movimento dos moradores. O que não sabíamos era que a primeira chuva estava ali apenas para lavar o telhado, molhar a terra e lavar as roupas. Diante das infraestruturas caseiras de captação de água, que nunca captam toda a água da chuva que cai do céu, nós nos perguntamos: Quanta água é suficiente? Que infraestrutura é suficiente?".
Baseados em São Paulo, Brasil, desde 2014, O Grupo Inteiro trabalha na encruzilhada entre design, arquitetura, pedagogia e tecnologia. Seus projetos, realizados em diálogo com muitos colaboradores, abordam as múltiplas dimensões das infraestruturas, os modos de convivência e as relações com a Terra. Partindo da cidade de São Paulo, os projetos estão muitas vezes ligados a espaços e instituições urbanas, o que leva o coletivo a elaborar temas como: moradia, educação, presença e disponibilidade de água, mobilidade urbana, direito à cidade, políticas de órgãos públicos, infraestruturas tecnológicas, entre outros. O Grupo Inteiro multiplica continuamente seus próprios caminhos e estabelece condições para diálogos públicos com diferentes redes, plataformas, pessoas e projetos.
Interessados em ampliar o entendimento político e cultural da relação com a água e suas infraestruturas para além do ambiente urbano e da região sudeste do Brasil, O Grupo Inteiro se conectou com a pesquisa de Vitor Cesar e Enrico Rocha durante a bolsa de pesquisa do Het Nieuwe Instituut. As pesquisas de Vitor e Enrico se relacionam com as diferentes dimensões políticas, sociais e estéticas da água na região nordeste do país e, mais especificamente, no Ceará.
No contexto desta pesquisa, a água é observada em toda sua amplitude: na continuidade espacial entre ambientes rurais e urbanos, entendendo de seu papel nas relações extrativistas que as cidades e o capital financeiro têm com a vida rural - que definem, quem pode, ou não, ter acesso à água. "Através desta pesquisa, conseguimos nos aproximar de outras perspectivas, não apenas humanas, em um processo de conexão com outros seres e com o meio ambiente". Procuramos encontrar uma relação menos assimétrica entre a racionalidade (muitas vezes predatória) de quando falamos do mundo a partir de nossos desktops e as contradições da experiência real em campo. Mesmo diante das limitações impostas por uma pandemia", diz o coletivo.
Q&A with O grupo inteiro
1. In your proposal for the International Call for Fellows: Regeneration: Call for New Institutions, you propose a 'becoming-with-Caatinga Institution'; a space and method to get to know the Caatinga environment. Could you explain why the Caatinga is such an interesting territory to reimagine (the protocols, collective decision-making processes, forms of care, working ethos and financial structures of) institutions?
Talking about the Caatinga in the north-east region of Brazil, leads us to an imaginary beyond its environmental characteristics. It also considers cultural, political, economic and religious aspects.
Marked by intense and irregular climatic variation, this biome comprises long periods of drought, but also some moments of heavy rain. Drought is commonly associated with a set of representations linked to the ideas of poverty, social difficulties, and even stereotypes of regional cultures. The characteristics of Caatinga also make it difficult to dominate its territory for agriculture, especially on a large scale. This condition contributes to the idea that the territory is poor or problematic. For a long time, the people who lived with the Caatinga tended to be nomads and dealt with the land in other, less fixed and demarcated ways. Therefore, it seems interesting to us to think that the problem is not in the biome itself, but in the way of existence (fixed, extractive, colonial, ownership, capitalist) with the land.
Regardless of the land's association with poverty and unproductiveness, the fences of the latifundios (the division of the territory into large properties) were maintained from the colonial era up to the present day. Also, many interventions were made in the territory, such as the construction of large dams and enormous river crossings. The feasibility of this effort took place in a composition of governmental actions, such as the creation of institutes and departments of works against drought, together with the consolidation of a regional identity. This identity was in dispute to constitute a national identity at the beginning of the 20th century.
But the economic and industrial development of the south-east prevailed, as well as the modernist and cosmopolitan imaginary. Hence, a national imagination is consolidated in which the north-east region (where Caatinga is situated) is made up of people in need, but, at the same time, strong and original - in opposition to the modernist south-east. This vision seeks to justify successive interventions in this biome, based on the creation of those large dams and river crossings. To this day, the image of the sertanejo is exploited to justify works in the region, even if they only benefit industry, agribusiness and commodities for export. For us, this is a kind of symbolic infrastructure, through which countless operations or attempts at exploration and domination are conducted.
It is a fact that the Caatinga has badly deteriorated and has not prevented fences and large properties. After all, the matrix of human occupation of the biome is the same as a colonial matrix. However, there is a resistance of the biome. In the sense that there is no adherence, but instead the imposition of limits to this process of exploitation and domination.
1. Em sua proposta para a Chamada Internacional para Bolsistas: Regeneração: Novas Práticas Institucionais, você propõe uma "Instituição de Convívio com a Caatinga" (em inglês: becoming-with-Caatinga Institution); um espaço para o conhecimento com/a partir do bioma da Caatinga. Você poderia explicar por que a Caatinga é um território tão interessante para reimaginar (os protocolos, os processos coletivos de tomada de decisão, as formas de cuidado, a ética de trabalho e as estruturas financeiras das instituições)?
Falar da Caatinga na região nordeste do Brasil, nos leva a um imaginário para além de suas características ambientais. Considera também os aspectos culturais, políticos, econômicos e religiosos.
Marcado por variações climáticas intensas e irregulares, este bioma compreende longos períodos de seca, mas também alguns momentos de fortes chuvas. A seca é comumente associada a um conjunto de representações ligadas à ideia de pobreza, dificuldades sociais, e até mesmo estereótipos das culturas regionais. As características da Caatinga também tornam difícil a dominação do seu território para a agricultura, especialmente em grande escala. Esta condição contribui para a ideia de que o território é pobre ou problemático. Durante muito tempo, o povo que vivia com a Caatinga tendeu a ser nômade e a lidar com a terra de outras formas, menos fixas e demarcadas. Portanto, nos parece interessante pensar que o problema não está no bioma em si, mas no modo de existência (fixo, extrativo, colonial, patrimonialista, capitalista) com a terra.
Independentemente da associação da terra à pobreza e à improdutividade, as cercas dos latifúndios (grandes propriedades que dividem o território) foram mantidas desde o início da colonização até agora. Também foram feitas muitas intervenções no território, tais como: a construção de grandes barragens e a enorme travessia de rios. A viabilização deste esforço se deu através de uma composição de ações governamentais, como a criação de institutos e departamentos de obras contra a seca, juntamente com a consolidação de uma identidade regional. Esta identidade estava em disputa para a constituição de uma identidade nacional no início do século XX.
Porém, prevaleceu o desenvolvimento econômico e industrial do sudeste, assim como o imaginário modernista e cosmopolita. Assim, consolida-se um imaginário nacional no qual a região nordeste (onde está situada a Caatinga) é formada por pessoas carentes, mas, ao mesmo tempo, forte e original - em oposição ao sudeste modernista. Esta visão procura justificar sucessivas intervenções neste bioma, baseadas na criação destas grandes barragens e na transposição de rios. Até hoje, a imagem do sertanejo é explorada para justificar obras na região, mesmo que beneficiem principalmente a indústria, o agronegócio e as commodities para exportação. Para nós, esta é uma espécie de infraestrutura simbólica, através da qual são realizadas inúmeras operações ou tentativas de exploração e dominação.
É fato que a Caatinga tem sido muito deteriorada e não impediu a construção de cercas e grandes propriedades. Afinal, a matriz de ocupação humana do bioma é a mesma matriz colonial. Entretanto, há uma resistência do bioma, no sentido de não haver adesão, e sim a imposição de limites a esse processo de exploração e dominação.
2. In order to get to know Caatinga as an environment and its adherence and imposition of limits on the process of exploitation, you stayed in the territory twice during the time of the fellowship. How did you approach learning from the (human and multi-species) communities there in ways that are not knowledge-extractive?
The desire to avoid an attitude that would reproduce the colonial operation (and an extractive stance in relation to knowledge) has accompanied us since the beginning of this project. During our visits to Caatinga we maintained a neighbourhood situation and relationship, in which we included ourselves together with the other subjects (human and multi-species) that inhabit the Caatinga.
Until this stage of the project, which we consider to be a gesture of approximation, we maintain the desire to transform our understanding of the relationships we form with the Caatinga.
From the beginning of our research, we sought to approach contexts situated in Caatinga, involving networks, people, institutions, places, non-human beings and the possible diversities of this biome. The interaction with different networks was made through the indications of people we were already familiar with; from the neighbourhood relations to the curiosities aroused during the immersion, in a rhizomatic process from one node that led to another and so on. We were most interested in transforming our own relationship with the biome, instead of looking for direct representations of this context.
3. What forms of instituting, collective organisation and action did you experience while staying in the Caatinga area?
Staying in the Caatinga for a period of time made us follow other rhythms and understand that it is possible, and necessary, to learn from the non-adherence found in Caatinga. The aspect that emerged most strongly for us, among other things, was the idea of sufficiency. The logic of accumulation and waste completely loses its meaning in Caatinga, since the biome works with irregular climatic variation.
During our stay in Caatinga we visited two settlements and talked with members of those places. Many of those conversations reminded us of sufficiency. Not only in a discursive way, but because of the settlement members' ways of life and their way of acting in a non-cumulative way. Not oriented towards progress, modernity and developmentalism.
Cleidson is lives in one of the settlements and is a member of the landless rural workers' movement MST. His house, for example, is the only one in the neighbourhood made of rammed earth - the others are made of bricks. Considering the unusual earthquakes in the region, his house is now the safest, the one that is not cracking, unlike those of the neighbours. He did not talk about sufficiency directly in any of our conversations, but it is something that is embedded in his way of living. His movements in relation to the work on the land accompany the irregularity of the rainfalls - supported by possible and eventual aid from the government. There is a clear refusal to submit to extractive labour exploitation within models of hiring and settling families to work on extractivist farms or estates.
Sufficiency actions in this territory are contrasted with the great works that are still being carried out. In March 2021, for example, an important stage in the transposition of the São Francisco River in Ceará was completed. This water pipeline takes the water from the river to the reservoir of Castanhão - the largest reservoir in the state. The pipeline system to the port runs for about 255km. However, people who live in the vicinity of the channels cannot use the water.
In current conditions, it is impossible for water management actions to consider consumption of this volume in a state historically marked by water scarcity. Any collective agreement between the state and water management is only possible when also taking into account the non-adherence of the Caatinga to the colonial project. It seems to us that for change to happen it is necessary to act within the symbolic infrastructure (interrupting channels, deconstructing dams) and to change consolidated perceptions around public policies, accesses and major works. It is also necessary to include people who work through sufficiency and with technologies and ways of living based on the irregular rhythms of this biome in the decision-making process.
3. Que formas de instituição, organização coletiva e ação vocês experimentaram enquanto permaneceram na Caatinga?
Estar na Caatinga por um período de tempo nos fez acompanhar outros ritmos e entender que é possível e necessário aprender com a não aderência ao projeto desenvolvimentista/colonial. Um dos aspectos que reverberou mais fortemente para nós foi a ideia de suficiência. A lógica do acúmulo e do desperdício perde seu sentido na Caatinga, já que o bioma funciona com variações climáticas bastante irregulares.
Durante nossa estada na Caatinga, visitamos dois assentamentos e conversamos com membros desses lugares. Muitas dessas conversas nos fez refletir sobre a ideia da suficiência. Não apenas de forma discursiva, mas por conta dos modos de vida dos membros dos assentamentos, de suas formas de agir não-cumulativas e não orientadas ao progresso, à modernidade e ao desenvolvimentismo.
Cleidson vive em um dos assentamentos e é membro do movimento dos trabalhadores rurais sem-terra MST. Sua casa, por exemplo, é a única na vizinhança feita de taipa, enquanto as demais são de tijolo e cimento. Considerando os terremotos, pouco comuns na região, sua casa é agora a mais segura, a que não está rachando como as dos vizinhos. Ele não fala sobre a suficiência diretamente, mas é algo que está presente em seu modo de vida. Seus movimentos em relação ao trabalho na terra acompanham a irregularidade das chuvas - apoiados por uma possível e eventual ajuda do governo. Há uma recusa clara de se submeter à exploração extrativista em modelos de contratação de famílias para trabalhar em latifúndios.
Ações de suficiência se contrastam nesse território com as grandes obras que continuam sendo realizadas. Em março de 2021, por exemplo, foi concluída no Ceará uma importante etapa da transposição do Rio São Francisco, que leva a água do rio até o açude do Castanhão - o maior açude do estado. Os açudes sempre carregam a promessa de que vão contribuir com a distribuição e uso da água para seu entorno imediato e de toda região onde está instalado. Mas nesse caso, a água tem sido conduzida diretamente para a região metropolitana de Fortaleza, mais especificamente, para a termelétrica e siderúrgica do complexo portuário do Pecém. O consumo de água desse complexo portuário é tão alto, que secou a água do primeiro açude que o abastecia e logo depois fez secar quase todo o Castanhão. O sistema de canalização da água até o porto percorre cerca de 255km, porém, as pessoas que moram nas imediações dos canais não podem usar a água.
Não é viável que as ações de gestão da água permitam um consumo desse volume em um estado marcado historicamente pela escassez de água. Qualquer acordo coletivo só é possível considerando essa não aderência da Caatinga ao projeto colonial. Nos parece que para isso é preciso atuar nesta infraestrutura simbólica - interromper canais, desconstruir barragens, etc - e alterar percepções muito consolidadas em torno de políticas públicas, acessos e grandes obras. É preciso incluir nas tomadas de decisão pessoas que atuam por meio das noções de suficiência e com tecnologias e modos de vida baseados nos ritmos irregulares desse bioma.
4. While working through ways of living in Caatinga and thinking about what is considered 'sufficient', how do you then start carrying out and practising those encountered Caatinga-values in your own organisation as a collective, also after the formal fellowship finishes?
Most of the time, the conditions that make our processes and researches as a collective feasible are linked to projects and exhibitions. From the beginning, this condition imposes a commitment to a more objective and concrete result. In this fellowship, we were able to live differently with the research process, enjoying a longer time. In this way, we were able to cultivate uncertainties and undo assumptions that seemed obvious to us at the beginning of the process. We were then able to make room for experimentation, without clearly defining an end.
The times we lived through during this fellowship were intense: a political-pandemic (sanitary, environmental, economic, political-human) catastrophe in Brazil and abroad. Such events strongly inform the quality of the spaces created during a research. As well as the efforts, demands and individual and collective movements.
The serious and exhausting moment we are living through, on the personal and collective level - especially in the face of more than 460,000 deaths (and rising) in Brazil due to Covid-19 - made us understand the need to search for both life and institutional processes that value energy saving, doing the minimum and the just, while focusing on what is necessary for life to continue and regenerate on a small scale. At the moment, we seek to sustain a life in the face of what is sufficient, similar to plants and beings from the Caatinga such as mandacaru or chique-chique, which retain water, resisting long periods of drought.
All of this to also say that we reached the opposite of the imaginary backside inhabiting our desires at the beginning of the research. Such as the desire to produce a publication, a diagram of interactions and processes, sound pieces, videos, conversation circles and so many other materials and meetings.
In this case, the beta phase of an institution concerns the daily reorganisation of all the dynamics and dimensions of life, in the direction of what may be considered 'sufficient' for our collective and our collaborators in Caatinga right now. Thus, the sequence of our work should be oriented towards finding ways to carry out radical, small scale transformations of non-productivity in the current hegemonic ways of life (which is based mainly on consumption and maximum, excessive accumulation). This process of regeneration is one that demands, among other things, ongoing cooperation, solidarity, trust and connection.
4. A partir dos seus estudos sobre as formas de viver na Caatinga e sobre as noções do que é 'suficiente', como vocês começaram a praticar os valores da Caatinga encontrados em sua própria organização como um coletivo, também após o término formal da bolsa?
Na maioria das vezes, as condições que viabilizam nossos processos e pesquisas como um coletivo estão ligadas a projetos e exposições. Desde o início, esta condição impõe um compromisso orientado a um resultado mais objetivo e concreto. Nesta bolsa, pudemos conviver de maneira diferente com o processo de pesquisa, desfrutando de um tempo mais longo. Desta forma, pudemos cultivar incertezas e desfazer suposições que nos pareciam óbvias no início do processo. Assim, pudemos criar espaço para a experimentação, sem a clara delimitação de um fim.
Os tempos que atravessamos durante essa bolsa foram de imensa catástrofe: sanitária, ambiental, econômica, política-humana. Tais acontecimentos influenciaram fortemente a qualidade dos espaços criados durante essa pesquisa, bem como os esforços, demandas e movimentações individuais e coletivas.
A gravidade e o desgaste do momento que atravessamos, seja pela dimensão pessoal ou coletiva, nos fez compreender, frente à radicalidade de mais de 500 mil brasileiros mortos, a busca por uma vida e pela instituição de processos que prezam pela economia de energia, pelo fazer mínimo e justo, necessário para a vida seguir e se regenerar. Buscamos sustentar uma vida a partir do que é suficiente, assim como as plantas e os seres da caatinga, como o mandacaru ou o chique-chique, que guardam água em seus corpos, resistindo a longos períodos de estiagem.
Tudo isso para dizer que chegamos ao contrário do que imaginávamos no início da pesquisa, como a produção de uma publicação, um diagrama de interações e processos, peças sonoras, vídeos, rodas de conversa e tantos outros materiais e encontros.
Neste caso, a "fase beta" de uma instituição diz respeito à reorganização diária de todas as dinâmicas e dimensões da vida, na direção do que pode ser considerado 'suficiente' para nosso coletivo e nossos colaboradores na Caatinga neste momento. Assim, a sequência de nosso trabalho deve ser orientada para encontrar formas de realizar transformações radicais e em pequena escala de não-produtividade nos atuais modos de vida hegemônicos (que se baseiam principalmente no consumo e na acumulação máxima e excessiva). Este processo de regeneração é um processo que exige, entre outras coisas: cooperação contínua, solidariedade, confiança e conexão.
About this Q&A
For this Q&A, O grupo inteiro (Carol Tonetti, Cláudio Bueno, Ligia Nobre, Vitor Cesar with Enrico Rocha) answered all questions posed by Delany Boutkan collectively in a Google doc. These answers were edited down in collaboration with O grupo inteiro and Alessandra Fudoli.
Read the interview with Resolve Collective, the other 2020-2021 fellows, here.
Para esta entrevista, O Grupo Inteiro (Carol Tonetti, Cláudio Bueno, Ligia Nobre, Vitor Cesar com Enrico Rocha) respondeu coletivamente a todas as perguntas feitas por Delany Boutkan em um documento do Google. Estas respostas foram editadas em colaboração com O Grupo Inteiro e Alessandra Fudoli.
Leia a entrevista do Resolve Collective aqui.
Collaborators/ Colaboradores
Cilinha, dweller at Ibiapaba settlement and temporary worker at Logradouro farm. José Salvino, dweller of the Ibiapaba settlement. Cleidson, MST, dweller at the 25 de Maio settlement. Edison, Claudia e Vitor, family of dwellers and managers of Logradouro farm. Lindomar, cowboy. Chico Curador, agriculturalist and healer. Pedro Medeiros,engineer and teacher. Neto, Ailton e Alexandre, "conselheiristas" and teachers at Quixeramobim's Escola do Campo. Gilmar de Carvalho, professor and researcher. João Alfredo, professor, lawyer and politician. Carolina Sacconi, architect and urbanist, researcher. Julia Rebouças, curator of the 36º edition of Panorama da Arte Brasileira: Sertão | MAM, São Paulo, SP (2019). Het Nieuwe Instituut Research team: Marina Otero Verzier, Katía Truijen, Setareh Noorani, Carolina Pinto, Erick Fowler, Marten Kuijpers, Ludo Groen, Anastasia Kubrak, Klaas Kuitenbrouwer, Janilda Bartolomeu Leite, Alessandra Fudoli and Delany Boutkan. Beatrice Perracine, architect and urbanist, researcher, developing territorial maps. Human, nonhuman and more-than-human collaborators. Acknowledgment / Agradecimentos. Salete Salomoni, Livia Salomoni, Gabriela Valente.